As ruas de Vancouver pediam pelos passos de
Nane naquela noite. Quem sabe alguma surpresa aguardava, ou só as luzes da
cidade a chamavam a atenção mesmo. O termômetro na praça marcava frio, mas nada
comparado com o bloco dentro do peito. O
vento a chamava pra sentar num banco daquela praça, um que não tivesse ninguém
ao lado, ela queria só sentar e assistir as pessoas passarem. Queria decifrar
cada pessoa ali, saber se Deus havia a dado um presente, enxergar através dos
olhos, através dos dedos finos das mãos, mesmo olhando torto para Nane, todos
viam a beleza que aqueles olhos pesados carregavam. Mesmo quando nublados
ensolaravam os dias de chuva no campus da Getulio Vargas, ou faziam tempestade
numa bacia d’água só porque seu chá estava frio. A intensidade assinava os
contratos de amor, não tinha pena de gastar todas as lágrimas numa simples foto
pra aparentar distante ou bonita, num álbum inteiro pra parecer modelo. Ela
queria recordações épicas, diálogos ensaiados com o inimigo que dormia ao lado,
ela queria que a vontade de viver a acordasse, mas que dessa ela não
acompanharia até a porta, pediria pra ficar uma década ou duas. Que a paz
interior abandonasse a tenda dentro dela e ganhasse o mundo.
Nane era faceira, tinha malicia no olhar.
Entre lágrimas, a conversa tinha outro destino.
Arrumou as malas, as roupas
estavam fileira, deixou uma no canto da mala como especial, vestiria quanto o
encontrasse. Seu urso carregava o fardo de ter o mesmo nome e cheiro dele. Dele
quem?! Ele existia, Nane? Se existiu foi como uma passagem no sol, como sombra
no deserto. Porque não trazer bagagem pra um estranho, porque não trazer guerra
pra um território em paz. Sem bandeiras brancas, sem bombardear, sem lutar, só
com o peso das palavras o atingiu. O destruiu sem piedade, o jogou no canto da
rua, não houve comparação, não havia preço dado aquela noite. Quem dera
pudéssemos mais, se nos entregarmos mais, se nós quiséssemos mais. Mas queria o
menos, em nossas contas só haviam subtrações, mas Nane não podia arcar com as
conseqüências dos acordos feitos pela Intensidade. Então ela só caminhou por
aquelas ruas, até se perder numa praça bonita para se achar num quarto de
hotel.
Casa é onde você tem vontade de ficar só de meias.
Nane estava dormindo de tênis.
Hélida Carvalho
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